Fibrilhação Auricular

Figura – Fibrilhação Auricular

Vários mecanismos podem contribuir para a patofisiologia da FA: fibrose, infiltração de gordura, inflamação, alterações vasculares e disfunção dos canais iónicos. Todos estes factores acabam por promover ectopia e problemas de condução eléctrica,  culminando em contracções auriculares erráticas e ineficazes, e facilitando o estado de hipercoagulabilidade característicos da FA.

  1. Deve ser diagnosticado num ECG simples de 12 derivações, ou num traçado de uma única derivação mas duração de registo ≥ 30seg.
  2. Ausência de ondas P bem definidas; e
  3. Activação irregular das aurículas, que se reflecte em ondas de baixa amplitude, com morfologia e frequências constantemente variáveis (ondas f); e
  4. Intervalos R-R irregularmente irregulares.
    1. No entanto, se houver bloqueio completo AV ou FC muito elevadas, o ritmo pode ser regular.

FA classifica-se em 5 tipos, de acordo com a duração:

  • De novo: FA que não estava documentada, independentemente da duração ou gravidade.
  • Paroxística: FA que termina, espontaneamente ou através de intervenção médica, em < 7 dias.
  • Persistente: FA que permanece durante ≥ 7 dias, independentemente das tentativas de tratamento.
  • Persistente de longa duração: FA que dura por > 12 meses, em doentes em que se decide adoptar uma estratégia de controlo de ritmo.
  • Permanente: Termo que define uma atitude terapêutica e não um conceito fisiológico. Caracteriza a decisão, tomada em conjunto com o doente, de não adoptar uma estratégia de controlo de ritmo.

De seguida, algumas causas e factores de risco para FA:

  1. Demográficas
    1. Idade avançada
    2. Sexo masculino
  2. Hábitos
    1. Tabagismo
    2. Exercício físico intenso
    3. Álcool
    4. Consumo excessivo de cafeína
  3. Patologias e outros factores de risco
    1. HTA
    2. Obesidade
    3. Dislipidemia
    4. Obesidade
    5. DM e pré-diabetes
    6. Cardiopatia
      1. Valvular
      2. IC
      3. DCI aguda e crónica
      4. Hipertrófica
      5. Dilatada
      6. Congénita
    7. Arritmias
      1. Doença do nó sinusal
      2. WPW
      3. Prolongamento do intervalo PR
    8. TEP e TVP
    9. SPOC
    10. SAOS
    11. DRC
    12. Anemia
    13. Hipertiroidismo
  4. Cirurgia cardíaca ou cirurgia major
  5. História familiar
  6. Genética
    1. Mutação KVLQT1
    2. História familiar
    3. Síndromas QT curto
    4. Formas autossómicas dominantes de FA
  7. Infecção/inflamação sistémica
  8. Outras alterações do ECG
    1. QT longo, ou QT curto
    2. Onda P alargada
    3. ESV frequentes
    4. WPW
  9. Poluição ambiental
  10. Fármacos e drogas
    1. Antiarrítmicos
      1. Adenosina
      2. Amiodarona
      3. Flecainida
      4. Propafenona
    2. Quimioterápicos
    3. Antidepressivos
      1. Fluoxetina
    4. Anti-inflamatórios
      1. Diclofenac
      2. Inibidores COX-2
      3. GCT
    5. Antiplaquetários
      1. Ticagrelor
    6. Antipsicóticos
      1. Clorpromazina
      2. Clozapina
      3. Olanzapina
      4. Risperidona
      5. Quetiapina
    7. Bifosfonatos
      1. Alendronato
      2. Ácido zolendrónico
    8. Broncodilatadores
      1. Teofilina
      2. Brometo de ipratrópio
      3. Tiotrópio
      4. Aminofilina
      5. Terbutalina
    9. Canabinóides
    10. Ivabradina
    11. Cocaína
    12. Anfetaminas
    13. Ecstasy
    14. Fingolimod
    15. IL-2
    16. Inotrópicos
    17. Opióides
      1. Morfina
    18. Inibidores da fosfodiesterase
      1. Sildenafil
    19. Simpaticomiméticos
    20. Ergotamina
  1. Estudo Padrão
  2. ECG
  3. Ecocardiograma, se considerar pertinente para alterações relativas a tratamento (p.ex. alteração nos sintomas, suspeita de IC concomitante, etc.)
  4. HOLTER
  5. Outros estudos, de acordo com suspeita de outras patologias associadas (ex. Polissonografia, cintigrafia, etc.)
  • Encaminhar para SU se:
    1. Agravamento de IC ou IC de novo; e/ou
    2. Instabilidade hemodinâmica (síncope, confusão mental, hipotensão, edema agudo do pulmão, choque cardiogénico, etc.); e/ou 
    3. Suspeita de factor precipitante grave (ex. DCI aguda, TEP, tirotoxicose, pericardite, sepsis, BAV 3º grau, etc.); e/ou
    4. FA persistente/permanente e:
      • Suspeita de BAV completo, ou seja FA e Bradicardia e ritmo ventricular regular durante o período de vigília e em utente que não toma antiarrítmicos; e/ou
      • Bradicardia sintomática, em utente que não toma fármacos cronotrópicos negativos; e/ou
      • Pausas > 3 seg sintomáticas, em utente que não toma fármacos cronotrópicos negativos; e/ou
      • Pausas > 5 seg, durante o período de vigília, mesmo que sejam assintomáticas.
    5. Muito sintomáticos (escala mEHRA III/IV); e/ou
    6. História clínica de pré-excitação (ex. WPW); e/ou
    7. FA, de novo, há <48h; e/ou
    8. Se apresentar em consulta com FC mantida >120bpm.
  • Se nenhum dos factores do ponto 1 se verificar, fazer anamnese completa e pedir MCDT  no sentido de procurar e corrigir, se possível, causas/factores precipitantes, bem como de guiar o tratamento (ver pontos seguintes).
  • As mais recentes Guidelines europeias propõem uma abordagem assente em 4 pilares: (Comorbidities and risk factor managment) – A (Avoid stroke and thromboembolism) – R (Reduce symptoms by rate and rythm control) – E (Evaluation and dynamic reassessment).
    • [C] Comorbidities and risk factor managment(Comorbilidades e FRCV)
      1. Obesidade – ideal perda de peso de 10%, para IMC alvo 20-25kg/m2
      2. Actividade física – idealmente 150 a 300 min por semana de exercício físico moderado, ou 75 a 150 min por semana de exercício físico intenso
      3. Consumo de álcool – Redução para ≤ 3 bebidas padrão por semana
      4. HTA
        • TA alvo 120-129/70-79 mmHg na maioria dos doentes. Nos doentes frágeis ou com ≥ 85 anos, alvos de TA sistólica mais relaxados (<140mmHg, ou o mais baixo que o utente tolera) são aceitáveis.
        • . iECAARA podem ser mais eficazes na prevenção de episódios e FA recorrentes.
      5. Diabetes
      6. Tabagismo
      7. SAOS
      8. IC – Particular atenção na necessidade de utilizar diuréticos para alívio da congestão, e iSGLT2 em todos os utentes com IC
      9. DCI
      10. DRC
    • [A] Avoid stroke and thromboembolism(Anti-Coagulação)
      1. Controlar factores de risco que possam aumentar o risco hemorrágico, e monitorizar mais frequentemente doentes com risco:
        1. Controlo da HTA;
        2. Evicção de AINE e corticóides sistémicos, se possível;
        3. Redução de consumo de álcool para < 3 bebidas padrão/semana;
        4. Não usar antiagregantes, excepto nos primeiros 12 meses após intervenção coronária percutânea nos doentes com síndromes coronários (agudos ou crónicos);
        5. Utilizar IBP em doentes com alto risco de hemorragia gastro-intestinal;
        6. Minimizar, dentro do possível, actividades que aumentem consideravelmente o risco de queda;
        7. Monitorizar  mais frequentemente utentes frágeis/idosos.
      2. Calcular o risco trombótico de acordo com os scores CHA2DS2-VA.
        1. Se CHA2DS2-VA = 0: não anticoagular e reavaliar  em 4-6 meses.
        2. Se CHA2DS2-VA ≥ 1, considerar anticoagulação, tendo em conta risco hemorrágico e contra-indicações absolutas.
        3. Se CHA2DS2-VA ≥ 2, e sem contra-indicações absolutas para anticoagular:
          • Doente com válvula cardíaca mecânica, válvula cardíaca biológica colocada há < 6 meses, ou estenose mitral moderada a grave:
          • Outros doentes:
            • DOAC (primeira linha)ou
            • Inibidor da vitamina K
              • INR alvo 2.0-3.0
              • Tempo no intervalo terapêutico deve ser >70%. Caso contrário, ponderar trocar para DOAC.
        4. Encaminhar para consulta de Cardiologia, e eventualmente outra especialidade, se contraindicações para anticoagulação.
    • [R] Reduce symptoms by rate and rhythm control (Controlo Sintomático)
      1. Este passo divide-se em 2 tempos – 1º: controlo de frequência; 2º controlo de ritmo. Na maioria dos casos, o principal objectivo é a melhoria dos sintomas e qualidade de vida.
      2. 1º: Controlo de Frequência: Ao avançar para controlo de frequência, deve-se agir de acordo com resultado do HOLTER.
        1. FA e bradicardia:
          • Se houver bradicardia, incompetência cronotrópica, ou pausas >3seg, iatrogénicas ou não, ver doença do nó sinusal.
        2. FA paroxística, persistente, persistente de longa duração ou permanente:
          • Em primeiro lugar, estabelecer a FC Alvo:
            • Alvo inicial deverá ser uma FC média, em repouso, <110bpm, em todos os doentes, mesmo nos doentes assintomáticos.
            • Posteriormente, nos doentes que mantêm sintomas incomodativos apesar de FC <110bpm, relacionados com FA, a frequência cardíaca pode ser reduzida até que haja melhoria de sintomas ou intolerância medicamentosa.
          • Os Fármacos utilizados no controlo da frequência são:
            • β-Bloq– 1ª linha na ausência de asma ou DPOC graves, ou outras contraindicações; ou
            • BCC não dihidropiridínicos – 1ª linha na asma ou DPOC graves, se não houver contraindicações (ex. IC com FEVE reduzida).
            • Se mantiver sintomas e/ou FC >110bpm após titulação da dose:
              • Trocar de fármacos (β-Bloq por BCC não dihidropiridínicos, ou vice-versa); ou
              • Combinação com β-Bloq + digoxina, caso haja experiência com o fármaco por parte do Médico de Família. Recomenda-se avaliação periódica dos níveis de digoxina, que não deverão exceder os 0,9ng/mL, pelo risco de aumento de mortalidade. Monitorizar com AMPA e HOLTER após 1 semana pelo risco de bradicardia e hipotensão.
          • Quando referenciar para consulta de Cardiologia:
            • Se se decidir por controlo de ritmo (ver abaixo); e/ou
            • Se mantiver sintomas ou FC médias elevadas (>110bpm) apesar de tratamento optimizado, ou efeitos secundários não tolerados; e/ou
            • Dificuldade em escalar terapêutica devido a comorbilidades ou contraindicações dos fármacos; e/ou
            • Cardiopatia causada por Taquicardia (ex. IC de novo ou agravamento de ICIC com FE reduzida, HVE grave).
      3. 2º: Controlo de ritmo:
        1. Após controlo da FC, é importante ter em conta quais os doentes que podem beneficiar de um controlo de ritmo (ver abaixo).
        2. Reestabelecer o ritmo cardíaco trará sobretudo benefício sintomático e na qualidade de vida, e não na esperança de vida, excepto em alguns doentes de alto risco CV (ver abaixo quais).
        3. Todos os doentes que decidem, em conjunto com médico assistente, avançar para controlo de ritmo, devem ser encaminhados para consulta de Cardiologia.
        4. Deve ser equacionado o controlo de ritmo, sobretudo nos seguintes doentes:
          • Suspeita de que os sintomas possam ser causados pela FA, apesar do controlo de FC, ou impossibilidade/dificuldade de instituir terapêutica de controlo de frequência; e/ou
          • 1º episódio de FA ou FA há < 12 meses; e/ou
          • Suspeita de cardiopatia induzida pela Taquicardia; e/ou
          • Idade jovem; e/ou
          • Poucas ou nenhumas comorbilidades; e/ou
          • Cardiopatia estrutural ausente ou ligeira; e/ou
          • Volume da aurícula esquerda/atraso na condução auricular normais ou moderadamente aumentados; e/ou
          • FA desencadeada por doença aguda (ex. anemia, infecção); e/ou
          • Preferência do doente; ou
          • Nestes casos pode acarretar benefício da sobrevida, além de melhoria sintomática: FA há < 12 meses e:
            • ≥75 anos, ou
            • AVC/AIT, ou
            • ≥ 2 parâmetros de alto risco:
              • idade >65 anos
              • sexo feminino,
              • IC,
              • HTA,
              • diabetes,
              • DCI,
              • DRC,
              • HVE (>15mm)
    • [E] Evaluation and dynamic reassessment (Seguimento)
      1. Para a monitorização de sintomas antes, durante e após a terapêutica, poderá ser utlizada:
        1. escala mEHRA ;
        2. HOLTER e/ou oxímetros de pulso para perceber se os sintomas se relacionam com episódios de FA com taqui, ou bradicardia.
        3. Ter em conta que os sintomas de FA podem ser relativamente inespecíficos: palpitações, cansaço, dispneia, dor torácica, tonturas, mau condicionamento físico, síncope, ansiedade, humor deprimido, alterações de sono.
      2. Como fazer o seguimento dos doentes:
        1. FC e sintomas devem ser reavaliados  com Holter, preferencialmente na mesma semana, ou o mais cedo possível, após instituição ou alteração da terapêutica.
        2. Na maioria dos casos, sugere-se uma consulta 6 meses após o diagnóstico e, depois disso, pelo menos anual.
        3. Após controlo da FC, deverá ser feita avaliação anual com com ECG e HOLTER, sobretudo para procurar episódios de FA ou bradicardia/pausas (ver doença do nó sinusal).
        4. Se houver sintomas durante a actividade física, ponderar prova de esforço para avaliar se há um aumento rápido da FC >110bpm, ou incompetência cronotrópica (ver doença do nó sinusal).
        5. Deve ser pedido ecocardiograma pelo menos de 3 em 3 anos, ou antes caso se considere clinicamente pertinente, para monitorizar eventual aparecimento de cardiopatia causada por Taquicardia.
      3. O tratamento da fibrilhação auricular é crónico. Ao longo do tempo de seguimento, os diferentes aspectos do acrónimo CARE podem mudar, e por isso os médicos devem fazer uma análise crítica a cada reavaliação (p.ex, uma melhoria ou agravamento da função renal pode levar a uma necessidade de alterar a dose do DOAC).